segunda-feira, 11 de novembro de 2013

"A Fuga" de Sara Farinha


Voltava a casa… mais uma vez. Aos dezasseis anos de idade, não sabia quantas vezes partira. Tantas, quantas retornara. Voltava ao que nunca seria um lar e fazia-o, não porque não quisesse partir, mas porque havia um outro ser que o impelia a ficar.

Talvez um dia quebrasse o ciclo. Não hoje. Largou o boné numa cadeira desengonçada na entrada, pendurou o blusão roçado num dos pregos espetados na parede, sacudiu os pingos da chuva das biqueiras dos ténis e precipitou-se para onde a voz do homem ribombava sob os habituais gemidos nasalados.

*

Mal notava o aroma bafiento que emanava de tudo o que havia no quarto. Bateu a porta e deixou-se amparar pela madeira descascada, limpando com as costas da mão os lábios, agora viscosos.

Na penumbra da divisão mal distinguia a cama, nem os contornos do seu irmão mais novo, que permanecia enrolado nos cobertores cheios de buracos. O seu olho direito pulsava emanando o familiar calor do inchaço. Evitou acender a luz, daquele olho já não via muito… e já vira o trabalho feito no miúdo.

– Estás bem? – murmurou, notando o monte de cobertores ocuparem cada vez menos espaço na cama.
Esperou, como sempre faria, até que os olhos rasgados, e o rosto pequeno, saíssem debaixo das cobertas.
– Mano… – instigou, de novo, sentando-se na beira do colchão com um sibilo.

Sentiu, mais do que viu, o movimento. A cabecita do irmão espreitava, alerta a outros perigos, receoso de tudo o que era brusco. Voltou-se, num movimento lento, com uma pontada aguda nas vértebras e o cuidado de apenas mostrar o lado esquerdo da face.

– Está tudo bem. – assegurou.

– Voltaste! – murmurou o miúdo, no som nasalado, lançando-se ao pescoço do irmão mais velho que absorveu mais aquela dor.

– Voltei.

– Levas-me contigo, da próxima vez? – pediu o rapaz, sem o largar.

Com um nó na garganta, ignorou as dores espalhadas pelo corpo, apertando o abraço. Não podia voltar a partir. Pior, não podia ficar. Aos dezasseis anos estava preso. Mesmo que as portas se abrissem todos os dias para que saísse para o mundo, e quantas vezes fizera isso mesmo, saíra para não voltar e, no entanto, cedia mais uma vez. Apenas daquela vez.

– Dorme. – incentivou, afrouxando o aperto e depositando-o no colchão.

Entalou os cobertores em volta do irmão e dirigiu-se à janela. Abriu o vidro, juntou as mãos em concha do lado de fora e esperou. Um minuto, e recolheu um punhado de água fria com que lavou o sangue do rosto.

– Amanhã, levas-me contigo? – o miúdo insistiu.

– Levo. Agora dorme.

– Prometes?

– Sim.
*

As escadas rangiam a cada passo, os furos formavam padrões escuros por onde a escuridão espreitava. Trepou, dois a dois, cada degrau amaldiçoando o ranger debilitante causado pelo trabalho das térmitas. O cheiro a álcool e tabaco, entranhados nas paredes, era o cartão-de-visita da casa decrépita.

O fulgor dos dezasseis anos impunha um ritmo acicatado pela raiva, pelo ódio. Fechou a porta amarelada com um suspiro, hoje escapara ao castigo. Notou a respiração tranquila do seu irmão mais novo, acalmando-o de imediato. Apenas a pequena cabeça se mantinha fora das cobertas. Descalçou os ténis e esgueirou-se para a metade do colchão que lhe pertencia. Mais uma noite.

– Mano? – sussurrou o miúdo.

– Dorme. Estou aqui. – assegurou, tapando-o melhor com os roçados cobertores.

– É hoje que vamos embora?

– Hoje não. Amanhã, talvez.

– Sim. Levas-me contigo?

– Levo. Dorme, agora. – murmurou, beijando-o na testa e encostando-se à pequena e suja almofada.

*

O dia raiou com promessas de coisas boas. Algo que nem o sol podia prometer entregar. Levantou-se, ajudou o irmão a vestir-se e saiu porta fora, assim que pôde. Talvez hoje fosse o dia em que não voltaria, pensou, sabendo que não podia partir… nem podia ficar.

Olhou para trás, onde o miúdo acenava com ímpeto. Acenou de volta e caminhou, o mais depressa que conseguiu, para fora dali.

*

As luzes azuis e brancas rodavam no acesso à casa. O som de inúmeros passos ecoava pelo pátio. Desatou a correr, passou pela porta escancarada, desviando-se das mãos que o agarravam, que tentavam impedi-lo. Trepou as escadas, três a três, irrompendo pelo quarto.

Ali, num monte de carne amarfanhada no chão, jazia o irmão mais novo. Os rasgados olhos, agora desfocados, mantinham-se imóveis no soalho, focavam o nada, o infinito.

Dois pares de braços ampararam-lhe a queda. Tombou sobre os joelhos, sentindo o tremor das lágrimas que escorriam pelo rosto, e gritou. Gritou até lhe faltar a voz, até o desespero dar lugar à raiva, e esta o tomar. Cambaleou para fora do quarto, tropeçou no fim das escadas, arrancando pele das palmas das mãos ao segurar-se no partido corrimão de madeira.

Na cozinha, ele era escoltado por dois polícias. Cego a tudo, menos à dor que o consumia, agarrou numa das facas do cepo e enfiou-a no peito do seu pai.

Esperara demasiado. Suportara tudo. Agora, era tarde demais. Nenhum deles poderia voltar a sair dali.


Biografia

Sara Farinha nasceu em 1979, na cidade de Lisboa, onde vive. Licenciada em Sociologia do Trabalho, desde cedo que descobriu na literatura uma paixão pessoal. Autora do romance ‘Percepção, uma estranha realidade’, participou no terceiro e quarto volumes da Antologia de Poesia Contemporânea ‘Entre o Sono e o Sonho’.

Desde 2007 que administra o blogue ‘Sara Farinha’, a sua plataforma de autora, seguindo-se os blogues ‘Ser Poeta’ e ‘Percepção’. É, também, parte integrante da equipa do ‘Fantasy & Co.’ um grupo de autores dedicado à divulgação da Literatura Fantástica Portuguesa.

Bibliografia

‘Percepção, uma estranha realidade’, Alfarroba Edições, 2011
‘Ausência Consagrada’, vol. III da Antologia ‘Entre o Sono e o Sonho’, Chiado Editora, 2012
‘São Horas’, vol. IV da Antologia ‘Entre o Sono e o Sonho’, Chiado Editora, 2013
‘Dragões de Simir’, Smashwords, 2013
‘A Passagem Secreta’, Fénix n.º2, 2013


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