Voltava a casa… mais uma vez. Aos
dezasseis anos de idade, não sabia quantas vezes partira. Tantas, quantas
retornara. Voltava ao que nunca seria um lar e fazia-o, não porque não quisesse
partir, mas porque havia um outro ser que o impelia a ficar.
Talvez um dia quebrasse o ciclo.
Não hoje. Largou o boné numa cadeira desengonçada na entrada, pendurou o blusão
roçado num dos pregos espetados na parede, sacudiu os pingos da chuva das
biqueiras dos ténis e precipitou-se para onde a voz do homem ribombava sob os
habituais gemidos nasalados.
*
Mal notava o aroma bafiento que
emanava de tudo o que havia no quarto. Bateu a porta e deixou-se amparar pela
madeira descascada, limpando com as costas da mão os lábios, agora viscosos.
Na penumbra da divisão mal distinguia
a cama, nem os contornos do seu irmão mais novo, que permanecia enrolado nos
cobertores cheios de buracos. O seu olho direito pulsava emanando o familiar
calor do inchaço. Evitou acender a luz, daquele olho já não via muito… e já
vira o trabalho feito no miúdo.
– Estás bem? – murmurou, notando
o monte de cobertores ocuparem cada vez menos espaço na cama.
Esperou, como sempre faria, até
que os olhos rasgados, e o rosto pequeno, saíssem debaixo das cobertas.
– Mano… – instigou, de novo,
sentando-se na beira do colchão com um sibilo.
Sentiu, mais do que viu, o
movimento. A cabecita do irmão espreitava, alerta a outros perigos, receoso de
tudo o que era brusco. Voltou-se, num movimento lento, com uma pontada aguda
nas vértebras e o cuidado de apenas mostrar o lado esquerdo da face.
– Está tudo bem. – assegurou.
– Voltaste! – murmurou o miúdo,
no som nasalado, lançando-se ao pescoço do irmão mais velho que absorveu mais
aquela dor.
– Voltei.
– Levas-me contigo, da próxima
vez? – pediu o rapaz, sem o largar.
Com um nó na garganta, ignorou as
dores espalhadas pelo corpo, apertando o abraço. Não podia voltar a partir.
Pior, não podia ficar. Aos dezasseis anos estava preso. Mesmo que as portas se
abrissem todos os dias para que saísse para o mundo, e quantas vezes fizera
isso mesmo, saíra para não voltar e, no entanto, cedia mais uma vez. Apenas
daquela vez.
– Dorme. – incentivou, afrouxando
o aperto e depositando-o no colchão.
Entalou os cobertores em volta do
irmão e dirigiu-se à janela. Abriu o vidro, juntou as mãos em concha do lado de
fora e esperou. Um minuto, e recolheu um punhado de água fria com que lavou o
sangue do rosto.
– Amanhã, levas-me contigo? – o
miúdo insistiu.
– Levo. Agora dorme.
– Prometes?
– Sim.
*
As escadas rangiam a cada passo,
os furos formavam padrões escuros por onde a escuridão espreitava. Trepou, dois
a dois, cada degrau amaldiçoando o ranger debilitante causado pelo trabalho das
térmitas. O cheiro a álcool e tabaco, entranhados nas paredes, era o cartão-de-visita
da casa decrépita.
O fulgor dos dezasseis anos
impunha um ritmo acicatado pela raiva, pelo ódio. Fechou a porta amarelada com
um suspiro, hoje escapara ao castigo. Notou a respiração tranquila do seu irmão
mais novo, acalmando-o de imediato. Apenas a pequena cabeça se mantinha fora
das cobertas. Descalçou os ténis e esgueirou-se para a metade do colchão que
lhe pertencia. Mais uma noite.
– Mano? – sussurrou o miúdo.
– Dorme. Estou aqui. – assegurou,
tapando-o melhor com os roçados cobertores.
– É hoje que vamos embora?
– Hoje não. Amanhã, talvez.
– Sim. Levas-me contigo?
– Levo. Dorme, agora. – murmurou,
beijando-o na testa e encostando-se à pequena e suja almofada.
*
O dia raiou com promessas de
coisas boas. Algo que nem o sol podia prometer entregar. Levantou-se, ajudou o
irmão a vestir-se e saiu porta fora, assim que pôde. Talvez hoje fosse o dia em
que não voltaria, pensou, sabendo que não podia partir… nem podia ficar.
Olhou para trás, onde o miúdo
acenava com ímpeto. Acenou de volta e caminhou, o mais depressa que conseguiu,
para fora dali.
*
As luzes azuis e brancas rodavam
no acesso à casa. O som de inúmeros passos ecoava pelo pátio. Desatou a correr,
passou pela porta escancarada, desviando-se das mãos que o agarravam, que
tentavam impedi-lo. Trepou as escadas, três a três, irrompendo pelo quarto.
Ali, num monte de carne
amarfanhada no chão, jazia o irmão mais novo. Os rasgados olhos, agora
desfocados, mantinham-se imóveis no soalho, focavam o nada, o infinito.
Dois pares de braços ampararam-lhe
a queda. Tombou sobre os joelhos, sentindo o tremor das lágrimas que escorriam
pelo rosto, e gritou. Gritou até lhe faltar a voz, até o desespero dar lugar à
raiva, e esta o tomar. Cambaleou para fora do quarto, tropeçou no fim das
escadas, arrancando pele das palmas das mãos ao segurar-se no partido corrimão
de madeira.
Na cozinha, ele era escoltado por
dois polícias. Cego a tudo, menos à dor que o consumia, agarrou numa das facas
do cepo e enfiou-a no peito do seu pai.
Esperara demasiado. Suportara
tudo. Agora, era tarde demais. Nenhum deles poderia voltar a sair dali.
Biografia
Sara Farinha nasceu em 1979, na
cidade de Lisboa, onde vive. Licenciada em Sociologia do Trabalho, desde cedo
que descobriu na literatura uma paixão pessoal. Autora do romance ‘Percepção,
uma estranha realidade’, participou no terceiro e quarto volumes da Antologia
de Poesia Contemporânea ‘Entre o Sono e o Sonho’.
Desde 2007 que administra o
blogue ‘Sara Farinha’, a sua
plataforma de autora, seguindo-se os blogues ‘Ser Poeta’ e ‘Percepção’. É,
também, parte integrante da equipa do ‘Fantasy & Co.’ um grupo de
autores dedicado à divulgação da Literatura Fantástica Portuguesa.
Bibliografia
‘Percepção,
uma estranha realidade’, Alfarroba Edições, 2011
‘Ausência
Consagrada’, vol. III da Antologia ‘Entre o Sono e o Sonho’, Chiado Editora,
2012
‘São
Horas’, vol. IV da Antologia ‘Entre o Sono e o Sonho’, Chiado Editora, 2013
‘Dragões
de Simir’, Smashwords, 2013
‘A
Passagem Secreta’, Fénix n.º2, 2013
Está muito triste e tocante. Infelizmente há realidades assim.
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