Marco levantou a cabeça enquanto
escutava o enervante barulho provocado pelo erguer das persianas e sentia os
raios de sol a incidirem sobre os seus olhos pela primeira vez naquele dia.
Eram 9H30.
“Hoje é sábado. Temos de nos
levantar tão cedo?”
Chiara deu um jeito no cabelo e
cruzou os braços. Não estava furiosa, mas mostrava que facilmente poderia
atingir esse estado.
“Sabes perfeitamente o que tínhamos
combinado para hoje.”
Ele protestou entredentes, sem ter a
coragem de o fazer de forma a que ela o pudesse ouvir, e dirigiu-se à casa de
banho.
Não se passou meia hora até que se
fizessem à estrada. Era Chiara quem estava ao volante. Circulavam no seu Toyota
cinzento e citadino que contava já com uns seis anos de vida e ninguém para
além dela colocava as mãos naquele volante. Não que gostasse particularmente do
carro, mas era dela. E tudo o que era dela não pertencia a mais ninguém. O
mesmo se passava com o telemóvel, com o computador, com as roupas, com os
livros. Já Marco, namorado havia uns quatro anos, esse podia partir se
quisesse, embora nenhum deles tivesse intenção que isso sucedesse.
Estavam na auto-estrada, rumando em
direcção ao norte, a uns vinte quilómetros da capital, quando finalmente um
deles abriu a boca, interrompendo a música que a rádio emitia.
“Não sei qual é a tua ideia de fazer
centenas de quilómetros só para ir almoçar” - disse ele quando decidiu quebrar
o silêncio.
“634.”
“Diz?”
“634 quilómetros, ida e volta.”
“Pois, não compreendo.”
“Mesmo que te esforçasses para isso,
tu nunca compreenderias.”
Ele calou-se e ela concentrou-se na
estrada. Prosseguiram por alguns minutos até que Chiara, em vez de pousar a mão
direita na manete de mudança de velocidade, fê-lo na perna dele. Afagou-a
suavemente, continuando mesmo depois de ele reagir. Não podia censurá-lo por
ele não compreender a razão de ela querer fazer aquela viagem. Até porque a
fazia uma vez por ano, sempre na mesma altura. Tranquilamente, à medida que o
alcatrão era galgado, a barreira entre eles era transposta, e os sorrisos
acabaram por surgir. O primeiro deu-se ao quilómetro 77 da auto-estrada,
curiosamente o ano em que ele havia nascido.
Já passava do meio-dia quando
penetraram no pequeno concelho que queriam alcançar. Era uma cidade localizada
no interior, longe das grandes cidades, mas perto das raízes de uma boa parte
daqueles que preenchiam essas mesmas cidades. Chiara estacionou o carro em
frente a uma casa antiga mas recuperada. Possuía dois andares e o piso térreo
tinha uma porta feita de madeira, onde pequenos vidros rectangulares permitiam
que se vislumbrasse parte do interior. Estava entreaberta e Chiara voltou a
sorrir ao perceber que tinham chegado mesmo a tempo de entrar.
Não havia nada que identificasse o
local. Talvez por isso se chamasse 'O Escondidinho'. Tratava-se do restaurante
favorito dela, embora Marco nunca tivesse percebido a verdadeira razão, uma vez
que a comida não era assim tão boa. Pelo menos não ao ponto de justificar um
depósito de combustível para que fosse degustada. Dava para perceber que o
primeiro piso da casa correspondia à habitação dos donos do restaurante apesar
de ele nunca ter perguntado. Nem sobre eles, nem sobre a comida alguma vez ele
inquirira Chiara acerca da visita que costumavam fazer. Sabia que a resposta,
se houvesse, jamais saciaria a sua curiosidade.
Eles saíram do carro e entraram no
restaurante. Assim que a porta se abriu, uma mulher de idade aproximou-se, provavelmente alertada
pela campainha que soara com o movimento dela. Tratava-se da dona, a senhora
Otília. Na verdade, só ela e o marido, o senhor Inácio, trabalhavam ali. Assim
que Otília os viu levou as mãos ao coração, como se pudesse agarrá-lo para que
não lhe fugisse do peito.
“Menina Chiara.”
“Bom dia” - respondeu ela com um
sorriso.
“Vem, Inácio! Chegou a nossa cliente
favorita” - gritou a mulher para o interior da casa feita de pedra e revestida
de madeira.
Marco ficou ali a ver a sua namorada
ser abraçada por aquele casal de idosos. Beijaram-se e deram as mãos. Os
clientes foram levados para uma mesa enfeitada por um jarro de flores campestres,
a mesma de sempre e a mais afastada da entrada.
Demoraram cerca de quatro horas a
almoçar. Apenas outras duas mesas foram ocupadas por mais clientes, embora
esses fossem presenteados com uma respostas curtas e secas. Não que fosse
suposto não estarem ali, mas porque a visita de Chiara era tão rara que merecia
toda a atenção por parte de Otília e Inácio.
Durante e após a refeição, os idosos
sentaram-se junto do jovem casal e foram conversando como se o fizessem todos
os dias. Havia entre eles e Chiara uma empatia que Marco não entendia. Na
primeira vez que ali fora tentara, dera voltas e voltas ao destino no interior
da sua cabeça, tentando ligar aqueles dois à mulher com quem começara a
partilhar a vida. Todavia nada parecia ligá-los, não obstante parecessem estar
unidos por laços invisíveis.
A meio da tarde, Chiara e Marco
partiram. Ela tinha-se despedido dos donos como se os fosse ver no dia
seguinte, ao cruzar numa esquina ou numa mercearia qualquer, apesar de ter
plena consciência de que voltaria ali somente no ano seguinte.
A viagem de regresso fez-se nas
calmas. Ela trouxe um meio-sorriso e Marco acabou por adormecer no início do
percurso, vingando-se do tempo de sono que lhe havia sido roubado pela manhã.
Chiara não sabia porque tinha de ir
ali anualmente. Fazia-o desde a primeira vez que visitara o espaço, quando
estivera a passar férias na casa de uma amiga da faculdade que era oriunda
daquela pequena cidade. Havia algo que a arrastava para aquele restaurante, sem
que soubesse o quê. Também não fazia ideia da razão pela qual era tão bem
recebida. Mas havia coisas que não tinham de ser explicadas. Simplesmente eram.
Também não teria uma explicação a dar caso alguma vez subisse ao primeira piso
da casa que Inácio e Otília habitavam e se deparasse com o cenário que a
esperaria. Era uma espécie de santuário, no qual dezenas de fotografias antigas
preenchiam as paredes que já haviam sido brancas e a superfície dos móveis
feitos de madeira maciça. No interior de todas essas molduras, contava-se a
história de uma menina. Era a filha de Inácio e de Otília que desaparecera no
dia em que atingira a maioridade e resolvera emigrar para a Austrália. Nunca
mais dera notícias e ninguém na terra sabia se estava viva ou morta. Mas uma
coisa o idoso casal sabia. Se Chiara não se chamasse Chiara, certamente teria o
nome da filha desaparecida fazia naquele dia quinze anos.
Muito bem escrito.
ResponderEliminarGostei muito.O reencontro entre o passado e o presente num chamamento inexplicável,como tantas outras coisas que acontecem na vida.