Manuel
subiu para o seu quarto. Estava preocupado com o seu avô e com medo do que iria
acontecer. Estava tão absorto nos seus pensamentos que nem reparou logo no
pequeno embrulho que estava pousado na sua almofada.
Ele
abriu o embrulho, este continha um envelope e um livro, o “1984” de George Orwell Uma lágrima correu-lhe pelo rosto. Com as mãos trémulas, pegou no
envelope. Tinha receio de o abrir. Estas eram as últimas palavras que o avô
escrevera para si. Rasgou o envelope lentamente, retirou com gentileza a carta
manuscrita.
Meu Caro Neto,
Se estás a ler isto é porque acabaste de
me ver a ser levado pela polícia, eu já sabia que eles vinham. O meu amigo Francisco
foi preso há uns dias atrás e eu sei que ele vai falar dos meus livros. Decidi
oferecer-te pelo natal o “1984” porque é muito semelhante ao que se passa
nestes tempos conturbados, espero que este te ilumine no futuro. Aconteça o que
acontecer, mesmo que eu não volte tens de proteger os livros, e não deixar a
cultura morrer.
Conto contigo meu neto querido, os meus
livros estão escondidos na cave, tens de os mudar arranjar um lugar seguro,
onde ninguém os encontre. Já tens dezoito anos e agora esta responsabilidade
recai sobre ti. Perdoa-me.
O teu avô que te ama muito.
Fernando
Manuel
releu a carta. Afinal era verdade, ele estava a esconder os livros do governo.
Sentiu-se orgulhoso do seu avô, apesar da sua idade, era um revolucionário. E
agora ele tinha de o ser também. O risco era muito alto, mas tinha de o correr.
Tinha
de esperar que todos adormecessem para retirar os livros. Ele confiava que a
casa não estivesse a ser vigiada, apenas quando as pessoas recolhessem às suas
casas para dormir é que ele conseguiria confirmá-lo. Deitou-se na cama a ler o
seu novo livro. Ele devorou as páginas, tudo o que estava a acontecer no seu
mundo tinha um paralelo nas palavras que o autor havia escrito décadas antes.
Eram altas horas da madrugada quando terminou, todos dormiam e era uma
excelente altura para ver se a costa estava livre e tentar sair com os livros.
À primeira vista, na rua estavam estacionados os carros habituais, mas uma
segunda verificação revelou um carro que nunca vira antes. De certeza que
estavam a tentar apanhar alguma coisa. Como por exemplo, ele a sair com os
livros. Tinha de engendrar um plano para conseguir tirar tudo da cave. Primeiro
tinha de encontrar o lugar ideal, não podia ser na sua casa, a sua mãe
matava-o. Mas, o cansaço estava a levar a melhor, naquela hora tardia, o melhor
era mesmo deitar-se a descansar. De manhã era um dia novo e podia pensar no que
fazer. Primeiro tinha de ir à cave ver o que o esperava. No silêncio da noite
conseguia ouvir um soluçar vindo do quarto da avó, a qual lamentava a ausência
do seu amado esposo.
A partir
desse Natal as coisas mudaram drasticamente. Para além do avô Fernando, outros
intelectuais e donos de grandes quantidades de livros não registados, foram
arrancados de suas casas. As famílias tentavam saber novidades, para onde os
tinham levado, como se encontravam. Mas, na esquadra da polícia ninguém sabia
de nada, não haviam quaisquer registos de detenções nem de quaisquer missões.
Cada vez mais desesperados, não entendiam o que se passava.
Manuel
acompanhou a avó Maria e o seu pai Filipe, numa tentativa de encontrar o seu
avô, mas as suas esperanças foram logradas. Um velho amigo da família, o agente
Fernandes, trabalhava no posto da aldeia, ele informou-os que nada havia
passado por lá. Mas corriam rumores que o governo havia criado uma secção
secreta que estava a levara cabo raptos por todo o país. A verdade é que em
todo o mundo o mesmo se estava a passar. Os livros estavam a ser todos
registados e quem não o fizesse era levado como insurgente.
Regressaram
devastados. Sem notícias e com o coração despedaçado, não sabiam mais o que
fazer.
Manuel
pediu ao seu pai para ficar com a avó, para lhe fazer companhia. Pedido esse
que foi logo aceite por Filipe, o qual ficava mais descansado com ele por lá e
orgulhoso da iniciativa do jovem. Sem saber que ele tinha uma segunda intenção
em ficar lá em casa, pretendia ir à cave.
A sua avó recolheu-se cedo. Eles não trocaram
nem uma palavra, ela estava cada vez mais deprimida, parecia que a sua vida se
esvaía lentamente, como uma vela quê se estingue. Ele preocupava-se com ela.
Tinha de arranjar uma forma de a animar, mas não lhe ocorria nada.
O
seu avô costumava guardar a chave da cave no seu escritório. Manuel vasculhou
em todas as gavetas sem sucesso, tirou todos os papéis. Olhou desesperado, mas
onde estaria?
Enquanto procurava na
primeira gaveta novamente esta caiu e revelou um compartimento secreto. No seu
interior encontrava-se a malfadada chave. Apressou-se a ir até à cave. Quando
lá chegou ficou estarrecido, a velha cave havia sido convertida numa
biblioteca. As estantes chegavam até ao tecto, o espaço entre elas mal permitia
uma pessoa passar de lado. Como é que eu
vou tirar isto daqui? Pensou ele.